David Runciman, autor do livro “Como a democracia chega ao fim” (RUNCIMAN, David (1967-). Título original: How Democracy Ends. Tradução: Sergio Flaksman. São Paulo: Todavia, 1ª ed., 2018) diz “Gandhi via a dependência crescente desses prazeres e confortos artificiais como uma das marcas da falência da nossa civilização.”
Gandhi atribui boa parte da culpa do que deu errado à moderna democracia representativa. Um sistema político que depende de governantes eleitos para tomar decisões em nosso nome jamais conseguiria nos resgatar dessa existência artificial. Como poderia?
A democracia representativa era totalmente artificial. Tornara-se escrava das máquinas. Operava através da máquina partidária, da máquina burocrática, da máquina do dinheiro. Os cidadãos se converteram em consumidores passivos do seu próprio destino político. Apertamos um botão e esperamos que o governo responda. Não admira que fiquemos decepcionados. Em vez de uma resposta, só recebemos promessas baratas e mentiras deslavadas.
Para Gandhi, o ideal era o retorno a algo mais parecido com a política cara a cara do mundo antigo, quando a interação humana independia da mediação de máquinas. Para ele, isso poderia acontecer numa Índia independente, se a sua democracia se organizasse em torno das comunidades dos vilarejos e dos tradicionais valores indianos de “autogoverno”.
“A máquina partidária, a máquina burocrática e a máquina do dinheiro continuam a imperar. A visão que Gandhi teve um século atrás, de uma sociedade governada por pessoas que apertam botões em nome de pessoas que apertam botões, acabou por se tornar real no lugar onde, esperava ele, seríamos resgatados dela. A vitória foi da máquina”.
A maneira de fazer política preferida por Gandhi é exigente demais para a maioria dos cidadãos do século XXI. Para Gandhi, “os indivíduos deviam viajar só até onde suas pernas pudessem levá-los e se comunicar apenas até onde a voz alcançasse”. Não temos como viver assim. Entretanto, reconhecemos instintivamente: Gandhi tinha razão quanto à situação a que a política chegou em nosso tempo.
A democracia moderna é extremamente mecânica e profundamente artificial. Não proporciona uma alternativa aos sistemas complexos que supostamente se encarrega de regular. Ela copia seu comportamento, tornando-se ela própria cada vez mais complexa e artificial.
Existe sempre uma contrapartida ao medo de o que pode acontecer caso a máquina pare. E Gandhi formula essa questão. “O que acontece se a máquina não parar? Nesse caso, onde iremos parar? Gandhi foi um profeta improvável do futuro da tecnologia digital. Mesmo assim, mostrou-se mais competente na matéria do que muitos especialistas em tecnologia.”
Ainda nos encontramos a alguma distância da prometida alvorada das máquinas com inteligência própria. Muitos pesquisadores de IA imaginam a possibilidade de máquinas realmente inteligentes ainda se encontrar no futuro. E vêm dizendo a mesma coisa há pelo menos cinquenta anos. O advento da IA está sempre vinte anos no futuro.
Assim como a democracia está destinada a chegar ao fim em algum momento, as máquinas inteligentes também acabarão surgindo, talvez até repentinamente. Mas ainda não chegamos lá. Estamos avançando depressa, mas não chegamos muito mais perto dos nossos sonhos mais fantásticos para o futuro. Os computadores são capazes de fazer coisas inimagináveis vinte anos atrás, muito além do alcance da mente humana. Mas não são capazes de pensar como nós.
A capacidade de aprendizado da máquina (machine learning) hoje faculta aos computadores minerar quantidades descomunais de dados à procura de conclusões das quais nenhum humano teria como chegar. E captando as regras do jogo à medida que avançam.
Não é um discernimento inteligente— falta às maquinas profundidade, percepção das nuances e ressonância emocional. Ainda assim, é a machine learningpermite a carros autodirigidos percorrer as ruas com mais segurança e firmeza que qualquer automóvel conduzido por um ser humano. A machine learningrevela ao Google o que você quer encontrar antes de você mesmo saber. Mesmo sem consciência de o que estão fazendo, as máquinas conseguem navegar melhor em relação a nós mesmos pelo mundo construído por nós. Nós não, cara-pálida! A gente é burra!
Não é difícil imaginar uma versão distópica desse futuro. Ser capaz de empregar cavalos mecânicos. Embora incapazes de pensar, são muito potentes e sofisticados. É uma das coisas capazes de nos tornar gordos e preguiçosos, mental e, quando não, fisicamente.
Os polibotssão robôs virtuais capazes de espalhar mensagens políticas conservadoras nas redes. Eles respondem por parte das escolhas de 55% do eleitorado brasileiro!
Por que não confiar todas as decisões difíceis a máquinas que sejam capazes de processar por nós quantidades imensas de dados?
Podemos agir assim por decisão consciente, desejando uma vida mais fácil. Ou podemos fazê-lo inconscientemente, porque nossa dependência cada vez maior das máquinas nos tornou incapazes de saber quando parar.
Todos conhecemos os sinais. Passamos horas enviando e respondendo e-mails insignificantes não em obediência aos nossos computadores, mas simplesmente porque nos falta a capacidade de quebrar o encanto. A única coisa capaz de nos libertar é o surgimento de uma tecnologia ainda mais acessível e imediata. Aí nos viciamos nela. A conveniência sem custo é sua própria maldição.
Na versão política do pesadelo, nossa dependência dessa tecnologia nos deixa prontos para sermos explorados. Quem vai nos escravizar não serão os robôs assassinos. Bastam indivíduos inescrupulosos capazes de usar as máquinas em seu benefício.
Em terra de dependentes da tecnologia, quem navega com esperteza é rei. E essa é a história de terror que hoje assombra a democracia ocidental.
David Runciman, em seu livro “Como a democracia chega ao fim”, voltará a ela mais adiante, ainda no terceiro capítulo. Seus sinais visíveis são as fake newse o microdirecionamento de mensagens aos eleitores, com conteúdo gerado por máquinas e construído de modo a apelar aos preconceitos de cada um. Se cair nas mãos erradas, o poder dos computadores de apertar nossos botões pode assinalar o fim da democracia.
Mas essa história não precisa ser distópica, e este capítulo não se limita ao pior capaz de acontecer. As máquinas ainda são apenas máquinas. Existe gente má como o clã bolsonarista. Ela pode fazer mau uso delas, mas as pessoas, em sua maioria, são indivíduos decentes.
Mesmo a vasta maioria dos cidadãos modernos não podendo viver o ideal de vida ascética de Gandhi, isso não significa todos terem fracassado como seres humanos. Para essas pessoas — para nós —, a tecnologia pode contribuir para melhorar nossa experiência de estar no mundo. A conveniência e o conforto não são desprezíveis. Nem tentam tornar mais eficiente o funcionamento da democracia.
Na verdade, as máquinas muito potentes, mas sem pensamento próprio, não são realmente nossas escravas, porque não sofrem nas mãos dos seus senhores — nós. E não somos corrompidos por usá-las, como ocorre aos humanos quando usam seus semelhantes como meros objetos. Essas máquinas são de fato meros objetos. Podemos usá-las como quisermos.
Por que então não as usar para aperfeiçoar nossa democracia em vez de destruí-la? Nossas instituições políticas atravessam dificuldades por não conseguirem achar soluções viáveis para problemas aparentemente inabordáveis.
Tudo indica que a capacidade de aprendizado da máquina poderia ser usada em nosso benefício, em vez de nos prejudicar. Máquinas que não perdem o foco devido a reações emocionais podem ser exatamente de o que precisamos.
Nas democracias, o foco se perde com extrema facilidade. As pessoas sentem as coisas deverem ser dessa ou daquela maneira, independentemente do que lhes dizem. As máquinas, não. Seguem os fatos até onde eles as levarem.
A máquina soluciona o problema; o representante político nos ajuda a entender o que a solução significa. Quem sabe assim a democracia funcione melhor.
Porém, para que isso possa ocorrer, outras coisas precisam acontecer primeiro. A política precisa recobrar certa medida de controle sobre essas máquinas, e sobre as pessoas controladoras delas no momento.
De outro modo, corremos o perigo de, em vez de usar máquinas para resolver nossos problemas, nos limitarmos ao tipo de problema de as máquinas serem capazes de resolver.
“A tecnologia, por si só, não determina o nosso futuro. Mas pode determinar, se deixarmos”, adverte David Runciman, no livro “Como a democracia chega ao fim”.
Revolução Tecnológica e o Fim da Democracia publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com
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