quarta-feira, 30 de janeiro de 2019

(Pre)domínio da Rede Social como Formadora da Opinião Pública

David Runciman, autor do livro “Como a democracia chega ao fim” (RUNCIMAN, David (1967-). Título original: How Democracy Ends. Tradução: Sergio Flaksman. São Paulo: Todavia, 1ª ed., 2018) afirma: os políticos mais bem-sucedidos na democracia atuam muito melhor em relação aos autoritários eleitos. Eles pensam em termos hierárquicos — e fazem questão de as pessoas alienadas ou ignorantes saberem disso para votarem neles.

Os políticos democráticos – como Lula – atraem as pessoas. A hierarquia é suplementada por uma rede. O Leviatã tem armas temíveis à disposição. Mas a verdadeira força do Estado democrático deriva da combinação de uma autoridade de cima para baixo com uma ampla capacidade de tornar cidadãos inclusivos, inclusive os mais pobres. A espada só funciona quando as pessoas sobre quem paira acreditam o governo ter o direito de usá-la em nome delas.

Essas são as pessoas criadas com educação familiar repressiva e violenta, senão pela punição aberta (surra), pela punição religiosa (culpa mental). Elas se submetem às religiões, seja cristã (católica ou evangélica), seja mulçumana (islamita), ou mesmo judaica, budista, hindu, ou qualquer uma das inúmeras com deuses próprios. Acreditar no sobrenatural para explicar o natural não compreendido é uma longa tradição humana.

Como um Estado moderno, o Facebook é tanto uma hierarquia quanto uma rede. Na verdade, é bem mais marcado pela hierarquia como qualquer Estado democrático: Zuckerberg e seu círculo imediato exercem um nível extraordinário de controle pessoal. Eu (Fernando Nogueira da Costa) já disse, dessa “fulanização” se chega a uma análise sistêmica equivocada por recorrer ao individualismo metodológico.

A situação lembra mais uma corte medieval em vez de qualquer entidade política moderna. O poder flui de cima para baixo. Ao mesmo tempo, sua rede é mais ampla e inclusiva em relação a qualquer Estado poderia construir.

O Facebook tem muito mais membros registrados se comparado a qualquer democracia. E seus usuários fazem mais coisas com o Facebook, e através dele, do que com qualquer instrumento político, ou através dele. O Estado nos provê serviços. O Facebook ajuda cada um a se tornar o curador da sua vida.

O Estado pode nos dar a sensação de segurança. O Facebook pode dar a cada um a sensação de ser amado.

A principal fraqueza política do Facebook está na extrema desconexão entre sua hierarquia e sua rede. A estrutura organizacional da empresa, de cima para baixo, não coaduna com a gigantesca e maciça dispersão de sua rede social.

Mas o Facebook pode solapar o funcionamento da democracia dos Estados Unidos?Sim. O desafio que representa não é direto, mas de segunda mão. A espada ainda vence o smartphone.

O Facebook não derrotaria o Leviatã em um combate mortal. Mas pode debilitar as forças capaz de manterem intacta a democracia moderna. Mesmo não conseguindo harmonizar sua hierarquia interna com a sua rede, ainda teria meios de desconjuntar a hierarquia e a rede do Estado democrático.

Chamar o acesso à rede social, via smartfone, de democracia em açãopode parecer absurdo. Mas é precisamente a ameaça que representa: transformar a democracia em uma paródia de si mesma.

O Twitter não é um meio viável para a prática política. Na melhor das hipóteses, proporciona aos usuários uma pálida imitação de democracia, em que as pessoas têm a oportunidade de dar vazão às suas frustrações sem precisar responder pelas consequências. É o que faz o presidente dos Estados Unidos ou o do Brasil toda vez que lhe dá na veneta.

Esse demagogismo grosseirotem traços em comum com a democracia diretado passado, mas não as qualidades que a redimiam. A multidão perde o medo quando se exalta, e não poupa seus alvos. Suas vítimas podem ser cidadãos comuns. Assim como políticos de destaque.

A noção de que uma afirmação inoportuna ou um gesto descuidado pode dar cabo do trabalho de toda uma vida tem um efeito inibidor para qualquer um. Exceto, talvez, para o presidente dos Estados Unidos – e sua cópia malfeita (e submissa): o do Brasil.

Como os políticos devem reagir? Um modo é o da conciliação. A tecnologia digital possibilita prevenir as frustrações da multidão garantindo que nada lhe é escondido.

A ideia de transparência total é insana. Se nada for ocultado, nada de substancial pode ser discutido, porque tudo pode se tornar comprometedor. O efeito inibidor será total.

Mas quando os políticos razoáveis tentam explicar essa questão ao público, a massa se volta contra eles. Por que não querem revelar o que fazem? O que tentam esconder? Em terra de transparência total, quem mantém privacidade parcial é bandido. Logo, todos os políticos se veem obrigados a carregar uma câmera da honestidade, ligada o tempo todo.

A democracia representativa anseia pelo que não pode ter. Somos permanentemente tentados pela possibilidade de tapar os buracos que existem na vida política: torná-la mais honesta, mais responsável, mais completa. A tecnologia digital multiplica essa tentação. Por que não obrigar os políticos a prestar contas mais diretas de tudo o que fazem? Por que permitir que escondam a verdade das pessoas cujos interesses deveriam representar? Por que não os desmascarar?

Todos queremos políticos de confiança. Saber o que cada político faz o tempo todo pode parecer um modo de confiar plenamente em sua atuação. Mas não é uma forma de confiança e sim de fiscalização, o oposto da confiança. Se sabemos de tudo o que acontece, a confiança perde o sentido. Não temos necessidade de confiar em pessoas vigiadas, quando elas jamais teriam como nos trair. Na verdade, seria como se elas fossem máquinas.

A precondição para confiar em alguém é a possibilidade de acabar decepcionado. Eliminar essa hipótese é abrir mão de confiar em quem quer que seja. Vai contra a intenção original.

E também é uma ideia ilusória. Nunca poderemos saber de tudo. Os políticos sempre hão de achar algum lugar para se esconder. Quanto mais transparência pedirmos, mais eles precisarão se apegar aos seus segredos para manter certas coisas fora das nossas vistas. A insistência numa transparência absoluta só faz aumentar o valor de estratagemas e esconderijos seguros. Quando descobrirmos quais são, nossa fúria será assustadora.

A democracia representativa não tem como fechar o círculo. Ela depende do espaço que se mantém:

  1. entre o povo e os políticos;
  2. entre a tomada de uma decisão e sua avaliação pelo público;
  3. entre o ato da vontade e o ato de julgar.

Depende de um tempo suficiente para a reflexão sobre o que fazemos. Pressupõe a decepção. É profundamente frustrante. Mas é essa frustração — a fricção que a proximidade cria sem nunca chegar a nos unir — que garante a persistência da relação entre a rede e a hierarquia. Já o Facebook não admite a frustração.

(Pre)domínio da Rede Social como Formadora da Opinião Pública publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com



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