John Thornhill (FT apud Valor, 25/01/19) resenha o livro sobre os contornos da era digital, “The Age of Surveillance Capitalism“, um raio de luz sobre a revolução tecnológica.
Criadora do conceito “capitalismo de vigilância”, Shoshana Zuboff diz no livro como esse “projeto comercial voraz e completamente inédito” reescreve as regras do jogo e cria assimetrias de conhecimento e poder. Seu principal alvo é o Google. Diz que a empresa inventou e aperfeiçoou o capitalismo de vigilância como a General Motors inventou e aperfeiçoou o capitalismo gerencial há um século. Mas há outros praticantes do capitalismo de vigilância que se somaram para contribuir nessa perversidade, mais notadamente o Facebook e a Microsoft.
Para Shoshana, a missão original do Google, de tornar acessível toda a informação disponível do mundo, transmutou-se em um imperativo implacável, o de ganhar dinheiro explorando e modificando o comportamento humano, apresentando anúncios aos usuários bem no momento em que estão mais suscetíveis a ser persuadidos e criando desejos que eles nem sabiam ter.
O Google está empenhado em uma grilagem de todos os dados, inventando novos produtos para aspirar cada partícula do mapa digital. Cada aparelho “inteligente”, desde assistentes pessoais virtuais e termômetros retais a carros autoguiados e casas conectadas, se tornaram mecanismos de coleta de dados. Todos funcionam como espelhos falsos, translúcidos de um lado, que permitem aos capitalistas de vigilância nos espionar sem que percebamos o que ocorre do outro lado do vidro.
“Houve época em que você pesquisava o Google, mas agora é o Google que pesquisa você”, escreve. Sete produtos e plataformas do Google possuem 1 bilhão de usuários ativos/mês: Gmail, Android, Chrome, Maps, Buscas, YouTube e Google Play Store, permitindo à empresa rastrear um número cada vez maior de áreas da vida do usuário.
Da mesma forma, o Facebook tem mais de 2 bilhões de usuários e expande seus interesses ao mundo físico. Ela compara o expansionismo dos capitalistas de vigilância aos conquistadores espanhóis, que reivindicavam territórios virgens no Novo Mundo, enquanto tiravam de cena os índios americanos desapercebidos.
Há, no entanto, uma natureza de dois lados no capitalismo de vigilância, o que o torna tão perigoso na opinião de Shoshana. Por trás da ilusão pública, esconde-se uma realidade sombria. Os usuários do Google não são seus clientes, a empresa é indiferente a seus interesses reais. As ferramentas de busca patrocinadas por anúncios sempre vão dar prioridade àqueles que pagam as contas em detrimento dos que usam seus serviços.
Esse costumava ser o ponto de vista de Sergey Brin e Larry Page, fundadores do Google, que apresentaram ensaio em 1998 destacando os perigos da publicidade. “Acreditamos que as ferramentas de busca financiadas por anúncios vão estar inerentemente inclinadas para o lado dos anunciantes afastando-se das necessidades dos consumidores. Esse tipo de inclinação é muito difícil de detectar, mas ainda pode ter efeito significativo no mercado”, escreveram. A visão mudou quando o Google percebeu que as revelações comportamentais que podia extrair de seus dados eram uma mina de ouro em potencial.
Ela diz que a lógica do capitalismo de vigilância foi articulada por Hal Varian, economista-chefe do Google, chamado de o “padrinho” do modelo de anúncios da empresa. Especialista em transações intermediadas por computador, Varian identificou quatro características:
- extração e análise de dados;
- novas formas contratuais em razão da melhor monetização;
- personalização; e
- experimentação contínua.
Foi essa fórmula que permitiu ao Google criar sua riqueza e que tem sido copiada. O que torna o capitalismo de vigilância onipresente é a forma como fica no encalço de nossas vulnerabilidades comportamentais.
Shoshana diz que a capacidade de comercializar o comportamento criou nova “mercadoria fictícia”, referindo-se ao termo de Karl Polanyi. Na opinião desse historiador, a economia de mercado apenas decolou quando três “invenções” mentais foram criadas, na forma de trabalho, terra e dinheiro, tornando conceitos abstratos em mercadorias negociáveis.
Da mesma forma, Shoshana diz que os capitalistas de vigilância conseguiram tornar o comportamento uma mercadoria fictícia, transformando nossos dados em lucros. “Não hospedam mais conteúdo, mas extraem agressiva, secreta e unilateralmente valor a partir desse conteúdo.”
O ponto em que Shoshana começa a vagar por terrenos mais polêmicos é em sua análise do poder. Os capitalistas de vigilância não apenas são capazes de monetizar nossos dados, mas podem usá-los para prever nosso comportamento e, portanto, modificá-lo. Em termos mecânicos, não são mais apenas “sensores”, mas “atuadores”.
Ela traça uma linha direta entre as polêmicas teorias comportamentais de B.F. Skinner, psicólogo de Harvard dos anos 60, e as teorias de hoje de Alex Pentland, professor do MIT e autor de “Social Physics” (física social, em inglês). Na opinião de ambos, diz Shoshana, a “verdade” computacional pode se mostrar uma forma mais eficaz de governar a sociedade do que a governança humana. A intenção é substituir nossa autonomia política pela heteronomia, a sujeição à vontade de “outros”.
Mas quem, então, vai determinar os valores desse “Grande Outro”? A ideia da China é usar a tecnologia para monitorar seus cidadãos e dar-lhes notas de crédito social, usadas para recompensá-los ou puni-los pelo que as autoridades consideram comportamentos socialmente bons ou ruins. Tendo destruído a confiança ao aniquilar todas as instituições sociais, o Partido Comunista chinês tem visto a tecnologia como meio para recriá-las artificialmente. Isso pode ser mais bem compreendido como a “apoteose do poder instrumentário alimentado por fontes privadas e públicas de dados e controlado por um Estado autoritário”.
No Ocidente, Shoshana diz que estamos em perigo de sofrer um “golpe contra as pessoas” em vez de um “golpe de Estado”. Ignora, em grande medida, o lado positivo da revolução tecnológica. Ela menospreza a dinâmica competitiva do mercado. E retrata os jovens como tolos, que usam seus telefones 157 vezes por dia, apesar de ficarem mais informados e céticos quanto à tecnologia.
A análise de Shoshana do poder também é passível de debate. O pecado fundamental de nomes como Larry Page, Mark Zuckerberg e Satya Nadella não é ser diabólicos, mas ingênuos. A extrapolação das tendências atuais leva a algumas conclusões extravagantes.
As evidências indicando que o capitalismo de vigilância pode estar aumentando o controle sobre as ações humanas são difusas, para dizer o mínimo. No Ocidente, pelo menos, o maior perigo talvez possa ser uma anarquia inspirada no Facebook do que um controle excessivo, como mostram movimentos de protesto, como os coletes amarelos, na França.
Era do Capitalismo de Vigilância de Comportamentos Habituais publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com
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