David Runciman, autor do livro “Como a democracia chega ao fim” (RUNCIMAN, David (1967-). Título original: How Democracy Ends. Tradução: Sergio Flaksman. São Paulo: Todavia, 1ª ed., 2018) registra: “uma queixa comum contra a democracia do século XXI é que ela perdeu o controle sobre o poder corporativo. As grandes empresas açambarcam riqueza e influência. Fomentam a desigualdade. Espoliam o planeta. Não pagam seus impostos. Para muitas empresas, esse tipo de queixa é inevitável — bancos e companhias petrolíferas convivem com elas há muito tempo. Mas os bancos e as companhias petrolíferas deixaram de ser as empresas mais poderosas do mundo. A faixa foi transmitida para as gigantes da tecnologia: Facebook, Google, Amazon e Apple. São empresas jovens e têm uma cara nova. Acreditam que o que fazem é bom. Não estão acostumadas a ser objeto de ódio. O Estado não sabe bem como lidar como monstros desse tipo.
Ainda assim, são apenas empresas. Se a democracia dos Estados Unidos encontrou forças para peitar titãs corporativos como a Standard Oil no início do século XX, por que não poderia enfrentar o Google e o Facebook nos dias de hoje? Mark Zuckerberg acumulou uma riqueza pessoal vertiginosa. Mas John D. Rockefeller foi, por alguns critérios, o homem mais rico de todos os tempos. Nem assim conseguiu salvar a empresa que criou. Todas as empresas têm um interruptor que as desliga. O Estado sabe onde fica. Ou pelo menos costumava saber”.
Nenhuma empresa, por mais rica ou poderosa que seja, pode existir sem o apoio do Estado. As empresas são criadas de acordo com a lei, e operam em meio a um emaranhado de normas e regulações que o Estado cria para nortear sua atividade.
A complexidade crescente das regras torna cada vez mais intimidador enfrentar qualquer grande empresa. Muitas empresas se especializaram em procurar a jurisdição mais adequada ao seu funcionamento. A existência de conjuntos diversos de regras criados por Estados rivais — ou por organizações não estatais, como a UE — torna ainda mais difícil esse esforço de regulação e controle.
Ainda assim, ele não é impossível. Demanda vontade política. A máquina complexa do Estado moderno muitas vezes torna invisível a presença da vontade política. Nem sempre conseguimos encontrar o interruptor na máquina quando precisamos. Ainda assim, ele está presente em algum lugar.
No passado,as democracias encontraram determinação para enfrentar o poder corporativo. Terão como fazê-lo de novo? Pode ser.
Entretanto, na era digital, essas analogias históricas podem representar um falso consolo. Os gigantes corporativos de hoje existem numa cultura política que se tornou muito tolerante com o seu poderio.
O Google e o Facebook têm um alcance muito maior em relação às corporações do passado. Não se limitam ao monopólio de um tipo de bem como o petróleo. Monopolizam muitas coisas ao mesmo tempo. Fornecem uma coisa de que nos tornamos dependentes em nossas vidas cotidianas— contamos com suas plataformas e produtos para a nossa comunicação. Ao mesmo tempo, influenciam o que dizemos uns aos outros, pela maneira como dão forma ao que vemos e ouvimos.
Zuckerberg é um industrial e, ao mesmo tempo, um magnata da mídia: Rockefeller e William Hearst em uma só pessoa. Esse Cidadão Kane não é só proprietário das rotativas digitais. Também é dono dos poços de petróleo digitais. Daí eu (Fernando Nogueira da Costa) discordo: se ele fulanizar ou personalizar, como aprecia fazer o cérebro de gente da esquerda, o pensamento de um sistema complexo com múltiplos componentes interativos fica mais fácil – e equivocado – para nosso cérebro humano processar.
Não há garantia de esse poder perdurar — empresas nascem e morrem. Quando a revista The Economist quis criar uma ilustração de capa para representar essa escala de poder corporativo, recuou muito mais no tempo.
“Zuckerberg aparecia como um imperador romano que decidia a nossa sorte erguendo ou baixando o polegar. Já foi comparado também a um faraó egípcio, dotado de poderes aparentemente divinos. Se fosse realmente o caso, não teríamos tanto motivo de preocupação. A autoridade divina de antigos soberanos acabou se revelando uma ilusão. Um faraó não é páreo para a eficácia da máquina do Estado moderno. Todos os imperadores comparados aos deuses têm pés de barro, mesmo os do século XXI. A verdadeira ameaça surge quando o Facebook consegue copiar o comportamento do Leviatã.”
Saltarei essa “fulanização” de David Runciman no livro “Como a democracia chega ao fim”. Mais adiante, de maneira mais interessante, ele coloca a disjuntiva entre o poder das armas e o poder do dinheiro.
“Qual dos gigantes vencerá? As condições da disputa não são iguais para os dois lados. O Leviatã de Hobbes é quem tem a espada. O Facebook não tem. Não pode obrigar ninguém à obediência pelo uso da força, ou ameaçando o uso da força. O que a criatura de Zuckerberg tem nas mãos é o smartphone, que tem um poder conectivo, não coercitivo. Precisa nos governar através do hábito, da persuasão e da distração. Os cidadãos modernos não podem decidir sair do Estado — faz parte do acordo hobbesiano não haver saída. Já um consumidor pode decidir deixar o Facebook a qualquer momento. O poder do Facebook depende de esvaziar cada vez mais essa escolha. Para Zuckerberg, é necessário que as pessoas sintam que não têm outro lugar para ir.”
Se o embate se desse apenas entre um gigante e outro, o Estado venceria. O Estado não tem apenas um Exército, uma força policial e um sistema judiciário. Também tem o controle da moeda, a outra grande arma do arsenal.
Para Hobbes, a capacidade de determinar o que vale como dinheiro é um dos poderes primários que um Estado pode possuir. Abandoná-lo equivaleria a abdicar do controle político, o que permanece verdadeiro. Os Estados delegam alegremente a autoridade monetária aos bancos centrais para manter o valor de sua moeda a salvo de interferências externas. Mas não a entregam a seus rivais corporativos.
Até que o Google e o Facebook criem moedas próprias, os dois têm bons motivos para temer o Federal Reserve, o banco central dos EUA. Dependem do Estado para lhes proporcionar uma reserva de valor. Sem ela, seu próprio valor é incerto. E é nisso que reside a atratividade de moedas digitais como o bitcoinpara muita gente no ramo da tecnologia — elas abrem a possibilidade de libertá-los de sua dependência do Estado.
Um dia, o Google e o Facebook podem muito bem vir a criar moedas próprias, ou pelo menos um equivalente próprio ao dinheiro que possa servir de reserva de valor, unidade contábil e meio de troca — o que é uma probabilidade tão mais realista do que algum dos dois criar um exército próprio. Mas isso ainda deve estar a uns vinte anos no futuro.
O poder sobre a espada e o poder sobre o dinheiro permitiram ao Estado derrotar corporações poderosíssimas no passado. Mas se esse novo confronto é de rede contra rede, as grandes empresas de tecnologia têm outras vantagens.
“O Facebook afirma ter quase 2 bilhões de membros, mais que qualquer Estado ou qualquer império. Pode se infiltrar na vida das pessoas com recursos que os Estados não têm. Como fornece o espaço em que elas compartilham suas experiências, tem a capacidade de dar forma à maneira como vivem. Os Estados obtêm esse efeito criando regras que podem reafirmar com o uso da força, em caso de necessidade. Já as redes sociais fazem o mesmo exercendo influência sobre o que as pessoas veem e escutam.”
O Poder das Armas versus O Poder do Dinheiro, ou melhor, O Poder do Controle das Informações publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com
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