David Runciman, em seu livro “Como a democracia chega ao fim”, afirma: outra das frustrações persistentes com relação à democracia contemporânea, além de sua incapacidade de resposta imediata, é sua artificialidade inerente. Nada nos parece mais artificial que os partidos políticos.
Como Gandhi assinalou, os partidos políticos existem para não deixar que as pessoas pensem por conta própria. O partido tenta dizer ao político que linha ele deve seguir. O partido tenta dizer ao eleitor em qual político ele deve votar. Os partidos impedem um encontro direto entre o povo e seus representantes, são ferramentas para a conquista do poder. São burocráticos e cheios de segredos. Sua tarefa é tornar a política a mais mecânica possível.
Ainda assim, quando trabalham bem, escondem essa artificialidade por trás de um rosto humano. Os líderes políticos carismáticos conseguem convencer os eleitores de que o partido é mais que uma simples máquina de arrecadar votos. Ele representa algo: a justiça, a segurança, a liberdade. Enquanto isso, os filiados a um partido político podem imbuir o mecanismo de alguma vida própria. Os partidos políticos de maior sucesso nos tempos modernos são os que conseguiram transmitir a seus membros uma autêntica sensação de pertencimento.
Mas esses dias parecem ter ficado para trás. Muitos partidos políticos de massa estão em declínio acentuado.
Hoje, pertencer a um partido é sinal de um interesse muito peculiar pela política, dado o pequeno número de pessoas o compartilhando. Só os mais excêntricos usariam um partido político como um local para conhecer um par romântico. O que só faz aumentar seu ar de artificialidade. Sem seus membros, os partidos políticos parecem cada vez mais vazios em relação ao que foram no passado.
Enquanto isso, a política dos partidos se torna cada vez mais partidária. Coalizões plurais do passado se transformaram em porta-vozes estridentes e intolerantes de determinados pontos de vista.
“Hoje, os partidos dividem os eleitores em campos claramente demarcados. Um núcleo de membros de maior engajamento político puxa cada partido para longe do outro; ao mesmo tempo, os eleitores comuns tendem a um contato cada vez menor com gente do outro lado. Não existem mais republicanos e democratas morando nos mesmos distritos — pelo menos não nos distritos eleitorais cuidadosamente traçados sob medida pelos políticos dos partidos. Republicanos e democratas não têm mais vida social comum, nem assistem aos mesmos telejornais. Em 1980, só 5% dos republicanos diziam não desejar que suas filhas e seus filhos se casassem com um ou uma democrata. Em 2010, essa proporção tinha subido para 49%.”
O carisma também parece cada vez mais rarefeito nas esferas mais altas dos principais partidos políticos. Parte da finalidade dos partidos políticos era distinguir os verdadeiros políticos de simples servidores públicos. Um autêntico líder político se elevava acima do rame-ramediário da política para transmitir uma visão do futuro. Todos os demais se apagavam ao fundo. Hoje, é cada vez mais difícil distinguir os líderes dos funcionários. A maioria dos políticos profissionais nunca teve qualquer outra profissão. Sobem por dentro da máquina, não se elevam acima dela.
David Runciman está falando de um declínio da democracia em longo prazo. No entanto, como em tantas outras situações, o declínio foi acelerado pela revolução das redes sociais. As comunidades da internet proporcionam várias maneiras de descobrir uma sensação de pertencimento. Não precisa a política se converter em um clube social quando há tantos outros tipos em oferta.
O rame-rameda política partidária convencional — participar de longas reuniões em cadeiras desconfortáveis e salas mal aquecidas, bater perna pelas ruas, organizar campanhas — pode parecer uma pálida imitação da gratificação disponível nas redes sociais. Claro, hoje também é possível usar a internet para algumas dessas atividades: as reuniões podem ser virtuais. De certa forma, “bater de porta em porta” pode ser feito através de um smartphone em escala (e abrangência geográfica) muito superior. Mas muitas outras coisas estão ao nosso alcance ao mero clique de um botão.
À medida que declina o apelo da política partidária à moda antiga, as pessoas participantes dela parecem destoar cada vez mais de todo o resto. A política se transformou em uma atividade de grupelhos e/ou tendências. Uma boa proporção dos insultos virtuais contra os políticos dos partidos se deve à sensação deles comporem um pequeno clube à parte.
“Queremos políticos que não se comportem como políticos. Queremos que sejam pessoas de verdade, mas muitos deles parecem autômatos. Na era da máquina digital, a qualidade mecânica da política partidária se transformou em sua maldição”.
Como resultado, muitos partidos políticos estabelecidos sofreram derrotas inéditas em eleições recentes. Os partidos convencionais de esquerda e de direita parecem sujeitos a um destino similar em quase todos os países do mundo democrático.
Em contraste, os partidos políticos com sucesso nos anos recentes foram os capazes de se transformarem em movimentos sociais. Na Grã-Bretanha, o Partido Trabalhista evitou a tendência de declínio de outros partidos socialdemocratas ao se reinventar como um movimento social. Oferecendo a seus membros uma voz possível de ser usada contra os representantes do partido no parlamento, reanimou a filiação em massa de eleitores. Os filiados não estão no partido para serem usados por seus deputados, mas justamente o contrário.
“O sucesso desses movimentos se beneficia da força dos efeitos de rede. Mais pessoas aderem porque outras pessoas aderem: querem estar na cena da ação. Os movimentos políticos usam as redes sociais e a comunicação digital para atrair eleitores. Crescem depressa, e proporcionam um envolvimento político mais imediato e direto que o disponível nos partidos políticos convencionais. Por enquanto, parecem ser a única forma de democracia representativa capaz de dar conta das exigências da era digital”.
No entanto, dar conta de uma coisa não é a mesma coisa que geri-la. Os movimentos sociais correm o risco de se converter nas coisas que vêm tentando explorar. O En Marche, na França, não se limitou a usar o Facebook. Acabou parecido com ele. Sua rede é vasta, mas a hierarquia é altamente vertical. O homem que está no topo está sozinho: Macron. Usa a linguagem da comunidade enquanto acumula autoridade pessoal. Na falta de uma estrutura partidária convencional, Macron se esforça para encontrar meios de unir as duas coisas.
A culpa pela intolerância de muitos dos movimentos políticos contemporâneos — seu desdém malévolo pela divergência — é muitas vezes atribuída ao pensamento de grupo. Este prolifera na internet. Qualquer movimento precisa o enfrentar na era digital. Tendo suplantado o partido político como instrumento de organização da política moderna, não lhe resta nada para fazer oposição à voz das suas próprias câmaras de eco. Esse era o papel do partido.
O cientista político e historiador Mark Lilla descreveu recentemente os partidos políticos como “máquinas de alcançar o consenso através de concessões”.1 Como muitos outros, Lilla culpa a política identitáriapela confusão em que os partidos políticos se encontram hoje.
Cada vez mais a pureza da experiência política é considerada mais importante que o resultado do processo político. Mas também é verdade estarmos cada vez mais cansados da inautenticidade da máquina política, quando experiências coletivas aparentemente mais genuínas estão disponíveis no mundo virtual. Queremos uma política real, esquecendo que todas as versões hoje disponíveis são mediadas por máquinas.
À diferença dos movimentos políticos, os partidos políticos nunca pretenderam ser a democracia. Eram a cola que unia a democracia representativa. Não está claro se a democracia pode funcionar sem eles. Só nos restam as peças: as redes, os líderes, as multidões, as eleições, as identidades, as massas. Tente construir algo com isso.
As redes sociais conferiram uma aparência de falsidade à democracia representativa. As versões falsas que existem na internet nos parecem mais reais. Por enquanto, destruímos uma coisa sem saber como substituí-la. O único substituto é uma versão esvaziada do mesmo de antes. A máquina partidária perdeu. A máquina digital venceu.
Artificialidade dos Partidos Políticos publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário