quinta-feira, 1 de agosto de 2019

Ouse entender!

Steven Pinker, no livro “O novo Iluminismo: Em defesa da razão, da ciência e do humanismo” (São Paulo: Companhia das Letras; 2018), afirma o tema primordial do iluminismo ser a razão. A razão é inegociável.

Se você começar a discutir por que devemos viver (ou qualquer outra questão), exige suas respostas, independentemente de quais forem elas, serem sensatas ou justificadas ou verdadeiras. Portanto, outras pessoas terão de acreditar nelas também. Você estará comprometido com a razão e com a avaliação das suas crenças segundo critérios objetivos.

Se existiu algo que os pensadores do Iluminismo tiveram em comum foi a exigência de aplicar vigorosamente o critério da razão para entender o mundo, em vez de recorrer a geradores de ilusão como a fé, o dogma, a revelação, a autoridade, o carisma, o misticismo, o profetismo, as visões, as intuições ou a análise interpretativa de textos sagrados.

Foi a razão capaz de levar a maioria dos pensadores iluministas a repudiar a crença em um Deus antropomórfico e atento aos assuntos humanos. A aplicação da razão revelou os relatos de milagres serem duvidosos. Os autores de livros sagrados tinham lá as suas falhas demasiado humanas. Os eventos naturais aconteciam sem levar em conta o bem-estar das pessoas. Diferentes culturas acreditavam em deidades mutuamente incompatíveis, nenhuma das quais com probabilidade menor de ser obra da imaginação.

Entretanto, nem todos os pensadores iluministas eram ateus. Alguns eram deístas (em contraste com os teístas): para eles, Deus pôs o universo em movimento e então deixou de interferir, permitindo-o se desenvolver de acordo com as leis da natureza. Outros eram panteístas: usavam “Deus” como sinônimo de leis da natureza. Mas poucos apelavam para o Deus legislador e milagroso das Escrituras.

Muitos autores atuais confundem a defesa iluminista da razão com a afirmação implausível de que os seres humanos são agentes perfeitamente racionais. Nada poderia estar mais distante da realidade histórica. Pensadores iluministas estavam muito conscientes das nossas paixões e fraquezas irracionais. Asseveravam: só expondo as fontes comuns de insensatez poderíamos ter esperança de superá-las. A aplicação deliberada da razão era necessária justamente porque nossos hábitos comuns de pensamento não eram muito razoáveis.

Isso leva ao segundo ideal, a ciência, o refinamento da razão com o objetivo de entender o mundo. A Revolução Científica foi revolucionária de um modo difícil de avaliar hoje, pois suas descobertas agora nos parecem muito naturais.

Foi uma libertação não só da ignorância, mas também do terror. Na Idade Média, predominava a crença de uma força externa controlar o cotidiano. Ela contribuía para uma espécie de paranoia coletiva, quando tempestades, trovões, relâmpagos, vendavais, eclipses do Sol ou da Lua, frentes frias, ondas de calor, secas e terremotos eram considerados símbolos e sinais da desaprovação divina. Como resultado, “os bichos-papões” do medo habitavam todas as esferas da vida.

Para os pensadores iluministas, a libertação da ignorância e da superstição mostrou o quanto a nossa sabedoria convencional pode ser equivocada e como os métodos da ciênciaceticismo, falibilismo, debate aberto e verificação empírica — são um paradigma de como alcançar o conhecimento confiável.

Esse conhecimento inclui compreender a nós mesmos. A necessidade de uma “ciência do homem” foi um tema capaz de unir pensadores iluministas discordantes sobre muitas outras coisas. Sua crença na existência de uma natureza humana universal possível de ser estudada cientificamente fez deles praticantes precoces de ciências avant la lettre, ou seja, elas viriam a ser nomeadas séculos mais tarde.

Eles foram neurocientistas cognitivos porque tentaram explicar o pensamento, a emoção e a psicopatologia com base em mecanismos físicos do cérebro. Foram psicólogos evolucionários porque procuraram caracterizar a vida em estado de natureza e identificar os instintos animais “infundidos em nosso peito”. Foram psicólogos sociais porque escreveram sobre os sentimentos morais capazes de nos atraírem mutuamente, as paixões egoístas a nos dividirem e as imperfeições da cegueira a atrapalharem os nossos melhores planos. E foram antropólogos culturais porque vasculharam relatos de viajantes e exploradores em busca de dados sobre elementos humanos universais e sobre a diversidade de costumes e práticas entre as culturas do mundo.

A ideia de uma natureza humana universal leva-nos a um terceiro tema, o humanismo. Os pensadores da Idade da Razão e do Iluminismo perceberam a necessidade urgente de um alicerce secular para a moralidade, pois viviam perseguidos pela memória histórica de séculos de carnificina religiosa: as Cruzadas, a Inquisição, as caças às bruxas, as guerras religiosas europeias.

Esse alicerce foi assentado sobre o que hoje chamamos de humanismo. Ele privilegia o bem-estar dos homens, mulheres e crianças individualmente, acima da glória da tribo, raça, nação ou religião. Os indivíduos, e não os grupos, são sencientes — eles sentem prazer e dor, satisfação e angústia.

Aquilo capaz de mobilizar a nossa preocupação moral, diziam os iluministas, é a capacidade universal de uma pessoa para sofrer e se desenvolver, fosse isso entendido como o objetivo de proporcionar a maior felicidade para o maior número, fosse como um imperativo categórico de tratar as pessoas como fins em vez de meios.

Felizmente, a natureza humana nos prepara para atender a esse chamado de mobilização. Isso acontece porque somos dotados do sentimento de solidariedade. Ele eles também chamavam de benevolência, piedade e compaixão.

Como somos dotados da capacidade de nos solidarizarmos uns com outros, nada pode impedir o círculo de solidariedade se expandir da família e da tribo para englobar toda a humanidade, sobretudo porque a razão nos incita a perceber não poder existir nada do qual apenas nós mesmos ou qualquer um dos círculos ao qual pertencemos sejamos merecedores. Somos forçados ao cosmopolitismo, a aceitar sermos cidadãos do mundo.

Uma sensibilidade humanística impeliu os pensadores iluministas a condenar não só a violência religiosa, mas também as crueldades seculares de sua época, entre elas a escravidão, o despotismo, as execuções por ofensas triviais, como pequenos furtos e caça ilegal, e as punições sádicas, como açoitamento, amputação, empalação, estripação, o despedaçamento na roda, a incineração na fogueira. O Iluminismo às vezes é chamado de Revolução Humanitária por ter levado à abolição de práticas bárbaras que por milênios haviam sido comuns em várias civilizações.

Se a abolição da escravidão e de castigos cruéis não for progresso, nada será, o que nos leva ao quarto ideal do Iluminismo. Com nossa compreensão do mundo desenvolvida pela ciência e nosso círculo de solidariedade expandido pela razão e pelo cosmopolitismo, a humanidade pôde progredir nas esferas intelectual e moral. Não precisa resignar-se aos sofrimentos e irracionalidades do presente, nem tentar fazer o relógio voltar a uma era dourada perdida.

Não devemos confundir a crença iluminista no progresso com a romântica crença oitocentista em forças, leis, dialéticas, lutas, desdobramentos, destinos, idades do homem e poderes evolucionários místicos. Esses fatores impeliriam a humanidade sempre para a crítica à realidade, isto é, em direção à utopia.

Para aprimorar o conhecimento e reabilitar-se dos erros, a crença iluminista era mais prosaica, uma combinação de razão e humanismo. Se nos mantivermos informados sobre como andam as nossas leis e maneiras, descobrirmos modos de melhorá-las, experimentarmos esses modos e conservarmos aqueles capazes de aumentarem o bem-estar das pessoas, poderemos gradualmente tornar o mundo um lugar melhor.

A própria ciência evolui passo a passo nesse ciclo de teoria e experimentação. Seu avanço incessante, sobreposto a reveses e retrocessos localizados, nos mostra como o progresso é possível.

O ideal do progresso também não deve ser confundido com o movimento do século XX cuja meta era a reengenharia da sociedade segundo conveniências de tecnocratas e planejadores. Essa tendência se chama de alto modernismo autoritário.

“A humanidade renascerá e viverá em uma relação ordenada com o todo”, eles supunham. Embora essas tendências às vezes fossem associadas à palavra “progresso”, o uso do termo era irônico: “progresso” não guiado pelo humanismo não é progresso.

Em vez de tentar moldar a natureza humana, a esperança de progresso do Iluminismo concentrava-se em instituições humanas. Sistemas criados pelo homem, como governos, leis, escolas, mercados e organismos internacionais, são um alvo natural para a aplicação da razão em prol do melhoramento da nossa espécie.

Nesse modo de pensar, o governo não é uma autorização divina para reinar, um sinônimo de “sociedade” ou um avatar da alma nacional, religiosa ou racial. É uma invenção humana, aceita tacitamente em um contrato social, criada para ampliar o bem-estar dos cidadãos, coordenando seu comportamento e dissuadindo as pessoas de certos atos egoístas. Eles podem ser tentadores em termos individuais, mas pioram a situação de todos.

Como determina o mais famoso produto do Iluminismo, a Declaração de Independência dos Estados Unidos, os governos são instituídos pelo povo para assegurar o direito à vida, à liberdade e à busca da felicidade, e derivam seus poderes do consentimento dos governados.

Entre os poderes do governo está a aplicação de punições. Os pais-fundadores americanos repensaram a licença do governo para causar dano aos seus cidadãos. Argumentaram a punição ao crime não ser um mandato para implementar a justiça cósmica, e sim parte de uma estrutura de incentivo capaz de dissuadir de atos antissociais sem causar um sofrimento maior do que aquele que desencoraja.

A razão pela qual o castigo deve ser adequado ao crime não é, por exemplo, equilibrar alguma balança mística da justiça, e sim assegurar um transgressor se deter diante de uma infração menor em vez de passar para outra mais danosa. Punições cruéis, sejam ou não “merecidas” em certo sentido, não são mais eficazes para evitar danos em lugar de punições moderadas, porém mais garantidas. Elas dessensibilizam os espectadores e brutalizam a sociedade capazes de as implementar.

Ouse entender! publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com



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