Nos anos 70, a Caixa Econômica Federal (Caixa) praticamente restringia-se à captação de depósitos de poupança – cerca de 80% do total – e seu direcionamento para o crédito destinado à aquisição da casa própria. O Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimos (SBPE) era o responsável pela captação de fundos para o Sistema Financeiro de Habitação (SFH), então regulado pelo Banco Nacional da Habitação (BNH).
As alterações implementadas no SBPE e SFH, no início da década de 80, resultaram em desequilíbrios nos contratos firmados com mutuários. Várias determinações legais deram início aos desequilíbrios na situação econômico-financeira da Caixa. Foram elas:
- redução de prestações e de saldos devedores com a aplicação de índices de correção inferiores ao custo de captação;
- alargamento de prazos de empréstimos;
- vinculação dos reajustes das prestações às variações salariais;
- efeitos dos planos de estabilização a atuarem de forma cumulativa e generalizada:
- quebrando o equilíbrio financeiro dos contratos,
- reduzindo o retorno dessas operações,
- paralisando a capacidade de reinvestimento em novos financiamentos habitacionais.
Foram alteradas as regras de movimentação e remuneração da caderneta de poupança, passando de uma periodicidade trimestral para mensal. Os impactos da alteração nas regras de movimentação e remuneração da caderneta de poupança foram também percebidos no custo médio da captação dos recursos. Na sistemática anterior, a perda de remuneração por saque fora da data base trazia maiores benefícios à instituição captadora.
Os desequilíbrios entre fontes e usos na carteira imobiliária começaram com as interferências nas regras dos contratos firmados com mutuários, no estertor do regime militar e no início do regime de alta inflação. Elas trouxeram benefício unilateral para os mutuários, com todo ônus sendo transferido para o SFH e, em última instância, para o Tesouro Nacional pela assunção das obrigações do FCVS.
Entretanto, a possível conversão de créditos ativos em créditos contra o FCVS eliminava o risco de crédito para a Caixa, mas não gerava a liquidez necessária para reaplicação em novas operações. Isso levava à perda do dinamismo do SFH.
Em julho de 1984, foi aplicado indexador para os saldos devedores dos créditos habitacionais diferente do aplicado nas correspondentes prestações: 254% e 127%, respectivamente. Essa decisão do último governo do regime militar de aplicar indexador menor para as prestações habitacionais que o aplicado aos saldos devedores pode ser considerado o maior fator de desequilíbrio de todo o Sistema Financeiro da Habitação – SFH. A partir daí, reduziram-se os retornos dos financiamentos, aumentaram as ocorrências de amortizações negativas (prestações insuficientes para cobertura do valor dos juros) e, conseqüentemente, o compromisso e a insuficiência de recursos do FCVS.
Outro fator determinante do desequilíbrio estrutural da Caixa, ocorrido na década de 80, foi a incorporação do BNH, e sua conseqüente atribuição como Agente Operador do FGTS, responsável não só pelas atividades de administradora dos ativos e passivos do fundo, mas, e principalmente, pelo risco de suas operações de crédito, inclusive daquelas contratadas anteriormente à incorporação. Para as operações realizadas à sua época, o BNH não possuía provisões para devedores duvidosos em níveis suficientes, nem mesmo para proteção contra o risco praticamente já caracterizado, como eram os casos das empresas em liquidação extrajudicial e das empresas tidas como “repassadoras”, grandes devedoras do FGTS, do Fundo de Assistência à Liquidez – FAL e do Fundo de Estabilização – FE. As provisões, necessárias à cobertura do risco com essas empresas, superaram o patrimônio líquido do BNH, incorporado pela Caixa.
O desequilíbrio nas contas do SFH tornou-se um problema na década de 80. O regime de alta inflação corroeu os salários e, consequentemente, a capacidade de pagamento dos mutuários. A inadimplência aumentou, e o governo militar em seu estertor tomou uma medida populista de direita: decidiu reajustar as prestações dos contratos habitacionais do SFH abaixo das taxas previstas nos empréstimos originais. Na prática, o que o governo fez foi cobrar menos dos tomadores de financiamentos e, ao mesmo tempo, garantir aos bancos eles receberem o que estava previsto nos contratos.
O saldo devedor acumulado nesses contratos foi repassado ao FCVS em “socialização das perdas” à brasileira. Criado, em junho de 1967, para cobrir saldos residuais de contratos de financiamento habitacional, o FCVS (Fundo de Compensação de Variações Salariais) deveria ter assumido um saldo , em valor presente, talvez ultrapasse 10% da DBGG (R$ 5,5 trilhões). Isso considerando o total atualizado da parcela dos créditos já transformados em títulos e os contratos inadimplentes ainda não reconhecidos oficialmente na dívida pública.
O problema vinha sendo protelado de governo para governo por causa dos próprios limites fiscais para assumir na contabilidade pública uma dívida desse porte. A assunção desses subsídios ocorreu sem a cobertura de recursos orçamentários.
O FCVS passou a assumir responsabilidades crescentes, incompatíveis com seu patrimônio e seu fluxo de caixa, acarretando o acúmulo da dívida. Essa dívida, porém, só tendia a crescer com a incorporação de juros. Como boa parte dela nem sequer estava oficializada, os juros não eram quitados, apenas incorporados contabilmente pelos bancos para serem pagos retroativamente algum dia. Assim, o “esqueleto” ficaria para administrações futuras.
O Tesouro já reconheceu e emitiu títulos correspondentes à dívida. Sobre essa parcela de títulos, conhecidos como CVS, desde 2005, o governo desembolsava juros semestrais e, a partir 2009, começaria a pagar o principal da dívida. Entre os maiores detentores desses papéis, estavam a Caixa Econômica Federal, então com R$ 6,7 bilhões, e a EMGEA (empresa constituída em 2002 no programa de saneamento dos bancos federais e que herdou os créditos ruins da Caixa Econômica), com R$ 900 milhões.
Mas ainda restavam bilhões de reais em créditos em poder de outros bancos. Eles estavam em processo de avaliação para serem transformados em títulos. O valor correspondia à diferença entre o valor pago pelos mutuários tomadores de empréstimos habitacionais na década de 80 e o saldo devedor remanescente no final dos contratos, em razão de descasamento entre o reajuste da prestação e a correção monetária do valor financiado.
A validação era lenta e, no processo, parte podia ser cancelada por não atender às exigências da legislação do FCVS, por exemplo, a determinação de que cada mutuário tivesse direito ao benefício em apenas um contrato.
A emissão dos títulos seguia a conveniência do governo por causa do impacto que isso acarretaria na dívida líquida do setor público e, como conseqüência, no esforço fiscal. Independentemente da data em que forem reconhecidos, esses créditos asseguravam aos detentores direito a juros retroativos a 2005. A demora em oficializá-los estava gerando um novo “esqueleto” para o governo a estourar no futuro.
Considerando todos os créditos serem confirmados e a taxa média dessa carteira fornecida pelo próprio banco, a Caixa receberia e a EMGEA receberiam muitos bilhões de reais. Os valores não estavam sendo integralmente quitados pela União, mas a diferença era incorporada aos ativos (bens) do banco. Os créditos e os CVS tinham pouco valor no mercado.
Mas, depois do prazo de carência para pagamento de juros, e com a proximidade de início das amortizações em 2009, os títulos a vencerem em 2027 estavam se valorizando. Segundo registros das negociações desses papéis na CETIP (Câmara de Custódia e Liquidação), os deságios dos títulos, que já chegaram a mais de 50%, caíram significativamente, registrando até deságio de 13%. A tendência passou a ser a de valorização.
Entre 1980 e 1990, houve pelo menos cinco decisões do governo concedendo subsídios ou mudando as regras de reajuste das prestações. O máximo da subvenção foi concedido no governo Sarney (1985/90). Em 1985, as prestações do SFH deveriam ser reajustadas em 242%, mas o governo decidiu a correção ser de 112%. Quando resolveu renegociar a dívida do FCVS com os bancos em 30 anos, com juros máximos de 6,17% anuais, o Tesouro Nacional o fez por meio da emissão de títulos da dívida interna.
A renegociação da dívida dependia da iniciativa dos bancos. Cabia às instituições financeiras, depois que o mutuário encerrasse o pagamento das prestações previstas no contrato, submeter o financiamento a análise da Caixa Econômica Federal para definir o valor do saldo devedor que seria refinanciado. O Tesouro Nacional estimava 85% da dívida ainda não ter sido refinanciada estavam na massa falida dos bancos Nacional e Econômico. Cerca de R$ 20 bilhões em contratos habitacionais foram dados em garantia ao Banco Central nas operações do PROER – o programa de ajuda aos bancos. O restante estava dividido entre a Caixa e a EMGEA, empresa criada pelo governo para assumir e cobrar os contratos habitacionais de má qualidade que estavam com as empresas públicas.
O governo já tinha deixado de pagar R$ 17,2 bilhões aos bancos por indícios de irregularidades nos contratos de financiamento imobiliário assinados até 1994, dentro das regras do SFH (Sistema Financeiro da Habitação). Eram 357.169 empréstimos que não obedeceram ao que determinava a lei.
A fraude mais comum era a duplicidade de contratos, ou seja, um mesmo mutuário teve mais de um imóvel financiado com subsídio do governo. Esses casos correspondiam a 244.907 contratos e, se tivessem sido pagos, somariam R$ 11,8 bilhões. Outro problema bastante comum era o de contratos deveriam ter sido quitados pelo seguro habitacional. Era o caso, por exemplo, de mutuários que morreram ao longo da vigência do contrato. Em 112.262 casos, os bancos quiseram cobrar do governo o equivalente a R$ 5,4 bilhões.
Somente 43 anos depois da criação do SFH e 13 anos após sua extinção o governo, através do trabalho de análise da Caixa, começou a dimensionar o tamanho das fraudes ao sistema. Durante o período em que os bancos, cooperativas de crédito e sociedades de crédito imobiliário e poupança liberaram recursos aos mutuários, não havia um cadastro centralizado dos financiamentos.
Todos os contratos enviados pelos bancos para pagamento pelo Tesouro Nacional eram submetidos à análise da Caixa. Ela era o agente operador do governo. Em uma primeira fase, os técnicos da Caixa verificavam se a documentação apresentada estava correta, se havia duplicidade, fazendo as atualizações monetárias, levando em conta as regras de cada contrato, e chegando a um valor do saldo devedor.
O banco responsável pelo financiamento tinha, então, de concordar com o valor proposto pela Caixa. Se esse fosse o caso, a próxima etapa era a emissão do título pelo Tesouro Nacional. Se o banco não concordasse com o ressarcimento proposto pelo governo, ou se houvesse qualquer problema documental, o contrato era devolvido à instituição financeira. Havia também um estoque de 4.051 contratos que o Tesouro não pagou porque o saldo devedor ao final do contrato, depois de feitas todas as atualizações, ficou zerado.
Como o atual governo paramilitar morre de saudade da ditadura, voltou com a correção monetária!
Crise do Subprime (avant la lettre) Brasileiro e Repetição do Erro pelo Governo Paramilitar publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com
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