quinta-feira, 8 de agosto de 2019

Piora da Desigualdade não significa Piora do Progresso

Steven Pinker, no livro “O novo Iluminismo: Em defesa da razão, da ciência e do humanismo” (São Paulo: Companhia das Letras; 2018), depois de ter examinado a história da desigualdade e visto as forças impelidas por ela, pode avaliar a afirmação de a desigualdade crescente das três últimas décadas tem o significado do mundo estar piorando: só os ricos prosperaram, enquanto todos os demais estão estagnados ou sofrendo. Os ricos decerto prosperaram mais se comparados a todos, talvez além do aceito, porém, a afirmação a respeito de todo o resto não é correta, por várias razões.

Mais obviamente, é falsa para o mundo como um todo: a maioria da raça humana está agora em condições muito melhores:

  1. o camelo de duas corcovas tornou-se um dromedário de uma corcova;
  2. o elefante tem o tamanho do corpo de um elefante;
  3. a extrema pobreza despencou e pode até desaparecer; e
  4. os coeficientes internacionais e globais de desigualdade estão em declínio.

Em parte, os pobres do mundo ficaram mais ricos em detrimento da classe média baixa americana. Se Pinker fosse um político americano, não admitiria em público a troca ter valido a pena. Porém, como cidadãos do mundo, considerando a humanidade como um todo, só podemos dizer ter valido.

Contudo, até nas classes baixa e média baixa de países ricos os ganhos de renda moderados não significam declínio no padrão de vida. Muitas das discussões atuais sobre desigualdade comparam desfavoravelmente a era atual com uma época dourada de empregos industriais bem remunerados e prestigiados. Eles se tornaram obsoletos em virtude da automação e da globalização.

Essa imagem idílica é desmentida por descrições contemporâneas das agruras da vida dos operários naquela época, tanto em relatos jornalísticos (por exemplo, o livro A outra América, de Michael Harrington, como em filmes realistas (como Sindicato de ladrões, Vivendo na corda bamba, O destino mudou sua vida e Norma Rae).

A historiadora Stephanie Coontz desmascara a nostalgia dos anos 1950. Ela contribui com alguns números para essas descrições:

“Nada menos do que 25% dos americanos, de 40 milhões a 50 milhões de pessoas, eram pobres em meados dos anos 1950 e, como não havia auxílio-alimentação nem programas habitacionais, era uma pobreza excruciante. Mesmo em fins daquela década, um terço das crianças americanas era pobre. Cerca de 60% dos americanos com mais de 65 anos tinham rendas inferiores a mil dólares em 1958, consideravelmente abaixo dos 3 mil a 10 mil dólares julgados representativos da condição de classe média. A maioria dos idosos também não contava com seguro-saúde. Apenas metade da população tinha economias em 1959; um quarto da população não possuía nenhum tipo de ativo líquido. Mesmo quando consideramos apenas as famílias brancas nascidas no país, um terço não conseguia sustentar-se com a renda do chefe da família”.

Como conciliar as óbvias melhoras em padrões de vida nas décadas recentes com a noção convencional da estagnação econômica? Os economistas apontam quatro modos pelos quais as estatísticas sobre desigualdade podem pintar um quadro enganoso da maneira como as pessoas viviam, cada qual dependente de uma distinção que examinamos.

O primeiro é a diferença entre prosperidade absoluta e relativa. Assim como nem todas as crianças podem ser acima da média, não é sinal de estagnação quando a proporção da renda auferida pela quinta parte na base não aumenta ao longo do tempo. O relevante para o bem-estar é quanto as pessoas ganham, e não a sua posição em uma classificação.

Um estudo recente do economista Stephen Rose dividiu a população americana em classes usando marcos fixos em vez de quantis. “Pobre” foi definido como uma renda de zero a trinta dólares anuais (em dólares de 2014) para uma família de três pessoas; “classe média baixa” como a faixa de 30 mil a 50 mil dólares e assim por diante. O estudo constatou, em termos absolutos, os americanos estarem ascendendo. Entre 1979 e 2014, a porcentagem de americanos pobres caiu de 24% para 20%, a porcentagem na classe média baixa caiu de 24% para 17%, e a porcentagem na classe média (faixa de 50 mil a 100 mil dólares) encolheu de 32% para 30%.

Para onde foram? Muitos foram parar na classe média alta (renda de 100 mil a 350 mil dólares), elevada de 13% para 30% da população, e na classe alta, elevada de 0,1% para 2%. A classe média está sendo esvaziada em parte porque muitos americanos estão se tornando ricos. A desigualdade aumentou, sem dúvida — os ricos ficaram mais ricos em ritmo maior se comparado ao de as classes pobre e média ficarem mais ricas —, porém, todo mundo (em média) se tornou mais rico.

A segunda confusão é entre dados anônimos e longitudinais. Se, por exemplo, a quinta parte na base da população americana não ganhou terreno em vinte anos, isso não significa um mesmo encanador receber o mesmo salário em 1988 e em 2008 (ou um salário um pouco maior, para compensar os aumentos no custo de vida). As pessoas ganham mais conforme progridem em idade e experiência, ou conseguem empregos mais bem remunerados. Por isso, o citado encanador pode ter passado da quinta parte na base para, digamos, a quinta parte no meio, enquanto um homem ou uma mulher mais jovem ou um imigrante ocupou seu lugar na base.

A rotatividade está longe de ser pequena. Um estudo recente com dados longitudinais mostrou metade dos americanos estar na décima parte mais alta das categorias de renda pelo menos por um ano de sua vida de trabalho. Um em nove estará no 1% do topo, embora a maioria não permaneça ali por muito tempo.

Essa pode ser uma das razões por que as opiniões econômicas estão sujeitas à disparidade de otimismo (o viés “eu estou bem, eles não”): a maioria dos americanos acredita o padrão de vida da classe média ter declinado em anos recentes, mas seu próprio padrão de vida ter melhorado.

Uma terceira razão de a desigualdade crescente não ter piorado as condições das classes da base da pirâmide é as rendas baixas serem mitigadas por transferências sociais. Apesar de toda a sua ideologia individualista, nos Estados Unidos ocorre muita redistribuição. O imposto de renda ainda é progressivo, e as rendas baixas contam com o amortecimento de um “estado de bem-estar oculto”.

Ele inclui seguro-desemprego, previdência social, sistemas públicos de saúde para pessoas de baixa renda, como o Medicare e o Medicaid, assistência temporária para famílias necessitadas, auxílio-alimentação e o Earned Income Tax Credit, uma espécie de imposto de renda negativo pelo qual o governo aumenta a renda de quem ganha pouco. Junte tudo isso, e os Estados Unidos tornam-se muito menos desiguais.

Em 2013 o índice de Gini para a renda bruta americana (antes de impostos e transferências), 0,53, foi elevado; para a renda disponível (depois de impostos e transferências), foi moderado: 0,38.

Os Estados Unidos não vão tão longe quanto países como Alemanha e Finlândia. Estes começam com uma distribuição semelhante para a renda de mercado, mas a nivelam de forma incisiva, empurrando seus Gini bem para baixo até a casa dos 0,2 e evitando grande parte do aumento da desigualdade pós-anos 1980.

Independentemente de o generoso Estado de bem-estar social europeu ser ou não sustentável no longo prazo e transplantável para os Estados Unidos, algum tipo de Estado de bem-estar pode ser encontrado em todos os países desenvolvidos. Ele reduz a desigualdade mesmo quando é oculto.

Essas transferências não apenas reduziram a desigualdade de renda (um feito dúbio), mas também elevaram as rendas dos não ricos (um feito real). Uma análise do economista Gary Burtless mostrou: entre 1979 e 2010 as rendas disponíveis dos quatro quintis inferiores cresceram 49%, 37%, 36% e 45%, respectivamente. E isso foi antes da demorada recuperação depois da Grande Recessão: entre 2014 e 2016, os salários médios tiveram a maior alta de todos os tempos.

Ainda mais significativo é o que aconteceu na base da escala. Tanto a esquerda como a direita há tempos se mostram céticas quanto aos programas de combate à pobreza. Quando são adicionados os benefícios do Estado de bem-estar social oculto e se estima o custo de vida de modo a levar em conta a melhora da qualidade e a queda nos preços dos bens de consumo, constata-se: a taxa de pobreza diminuiu em mais de três quartos nos últimos cinquenta anos. Em 2013 estava em 4,8%.

O progresso estagnou em torno do período da Grande Recessão, mas recuperou o ímpeto em 2015 e 2016, quando a renda da classe média atingiu seu ponto mais alto e a taxa de pobreza teve sua maior queda desde 1999. Em outro avanço não alardeado, entre 2007 e 2015, apesar da Grande Recessão, diminuiu em quase um terço o número dos mais pobres dentre os pobres: as pessoas sem teto.

O quarto modo pelo qual medidas de desigualdade subestimam o progresso das classes baixas e médias em países ricos. A renda é apenas um meio para um fim: um modo de pagar pelas coisas das quais as pessoas precisam, gostam e desejam — ou, na definição insípida dos economistas, o consumo.

Quando a pobreza é definida em termos do que as pessoas consomem, e não da renda recebida, descobrimos a taxa de pobreza nos Estados Unidos ter declinado 90% desde 1960, de 30% da população para apenas 3%. As duas forças célebres por aumentar a desigualdade de renda também diminuíram simultaneamente a desigualdade naquilo mais importante.

A primeira, a globalização, pode produzir vencedores e perdedores na renda, mas no consumo transforma quase todos em vencedores. Fábricas asiáticas, navios de carga e eficiência nas vendas varejistas levam às massas mercadorias que antes eram luxos para os ricos. Em 2005, o Walmart representou uma economia de US$ 2.300 por ano para uma família americana típica.

A segunda força, a tecnologia, continua a revolucionar o significado de renda. Um dólar hoje, ajustado pela inflação, compra muito mais melhorias para a vida em lugar de um dólar ontem. Compra coisas antes inexistentes, por exemplo, refrigeração, eletricidade, instalações sanitárias, vacinas, telefones, contracepção e viagens aéreas, e transforma coisas já existentes, como uma linha telefônica comum, intermediada por uma telefonista, em um smartphone com tempo de ligação ilimitado.

Juntas, a tecnologia e a globalização transformaram o significado de ser uma pessoa pobre, ao menos em países desenvolvidos. O velho estereótipo da pobreza era um mendigo esquelético e esfarrapado. Hoje os pobres têm a mesma probabilidade de seus empregadores de sofrer de sobrepeso, usar o mesmo agasalho flanelado, tênis e calça jeans. Os pobres antes eram chamados de despossuídos.

Em 2011, mais de 95% dos lares americanos abaixo da linha da pobreza possuíam eletricidade, água corrente, vasos sanitários com descarga, refrigerador, fogão e TV em cores. Obviamente, um século e meio antes, os Rothschild, Astor e Vanderbilt não tinham nada dessas coisas.

Quase metade dos domicílios abaixo da linha da pobreza possuía lavadora e secadora de roupa, e mais de 80% tinham condicionador de ar, filmadora e celular. Na Era Dourada da Igualdade Econômica, os “abonados” da classe média não contavam com quase nada ou nenhuma dessas coisas. Como consequência, os mais preciosos dos recursos — tempo, liberdade e experiências inesquecíveis — estão aumentando para todos sem exceção.

Os ricos ficaram mais ricos, porém suas vidas não melhoraram tanto. Warren Buffett pode ter mais condicionadores de ar, se comparado à maioria das pessoas, ou aparelhos melhores, mas, pelos padrões históricos, o fato de a maioria dos americanos pobres chegar a possuir ar-condicionado é impressionante.

Quando se calculou o índice de Gini com base no consumo, e não na renda, a área da desigualdade permaneceu rasa ou rente à linha da igualdade no gráfico.

A desigualdade na felicidade autodeclarada na população americana também diminuiu. Embora Pinker considere de mau gosto celebrar o declínio dos índices de Gini para vida, saúde e educação (como se fosse bom para a humanidade matar os mais ricos e manter os mais inteligentes fora da escola), na verdade, eles declinaram pelas razões certas: a vida dos pobres está melhorando mais rapidamente se comparada à dos ricos.

[Fernando Nogueira da Costa: alerta para o fato de Steve Pinker estar falando sobre distribuição de renda e consumo, e não de riqueza. O enriquecimento como acumulação de saldo de riqueza financeira líquida como reserva para um futuro incerto não recebeu suas considerações nesse capítulo sobre Desigualdade. Em Sociedades de Executivos, onde se recebe bônus anuais sob forma de participações acionárias milionárias, a concentração de riqueza é muito superior à da renda. Principalmente, quando em economia de mercado de capitais há boom das cotações.]

Piora da Desigualdade não significa Piora do Progresso publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com



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