quarta-feira, 7 de agosto de 2019

Estágio Atual da História da Desigualdade

Steven Pinker, no livro “O novo Iluminismo: Em defesa da razão, da ciência e do humanismo” (São Paulo: Companhia das Letras; 2018), completa seu percurso pela história da desigualdade examinando o aumento da desigualdade em países ricos iniciado por volta de 1980. Esse é o retrocesso inspirador da noção de a vida ter piorado para todos, exceto para os mais ricos.

O recuo não condiz com a curva de Kuznets, segundo a qual a desigualdade deveria ter se estabilizado em um nível de equilíbrio baixo. Muitas explicações foram propostas para essa surpresa.

As restrições do tempo da guerra à competição econômica podem ter sido persistentes e perdurado depois da Segunda Guerra Mundial, mas enfim se dissiparam. Após a mudança da Economia de Guerra, liberaram os ricos para se tornarem ainda mais ricos, graças ao rendimento de seus investimentos, e para franquearem uma arena da concorrência dinâmica na qual os vencedores ficam com o total dos ganhos.

A mudança ideológica, associada ao neoliberalismo implantado por Ronald Reagan e Margaret Thatcher, desacelerou o movimento em direção ao aumento do gasto social financiado com impostos sobre os ricos e erodiu as normas sociais contra salários exorbitantes e ostentação de riqueza.

Quanto à mudança social-demográfica, conforme mais pessoas permaneciam solteiras ou se divorciavam, e ao mesmo tempo mais casais bem remunerados juntavam dois salários polpudos, era inevitável a variação da renda entre os domicílios vir a aumentar, mesmo se as remunerações permanecessem iguais.

A “quarta revolução industrial”, impelida pelas tecnologias eletrônicas e internet das coisas, reproduziu a elevação de Kuznets, criando uma demanda por profissionais altamente qualificados, barrando o acesso dos menos instruídos ao mesmo tempo enquanto os empregos cujos requisitos exigiam menos instrução eram eliminados pela automação.

A globalização permitiu trabalhadores na China, Índia e outras partes ter sua força do trabalho vendida por salários menores em relação aos pagos por seus concorrentes americanos, em um mercado de trabalho mundial. Logo, as empresas nacionais incapazes de aproveitarem dessas oportunidades no exterior veriam seus preços perderem competitividade. Ao mesmo tempo, a produção intelectual dos analistas, empreendedores, investidores e criadores bem-sucedidos passou a estar cada vez mais disponível para um mercado global imenso. O operário industrial no Ocidente é demitido, enquanto talentos da Economia Criativa se tornam milionários.

Milanović combinou as duas tendências da desigualdade dos últimos trinta anos — declínio da desigualdade no mundo todo, aumento da desigualdade em países ricos — em um só gráfico. Lembra os simpáticos contornos de um elefante do corpanzil à tromba em J. Essa “curva de incidência do crescimento” classifica a população mundial em vinte categorias numéricas, ou quantis, dos mais pobres aos mais ricos, e indica graficamente quanto cada categoria ganhou ou perdeu em termos de renda real per capita entre 1988 (pouco antes da queda do Muro de Berlim) e 2008 (pouco antes da Grande Recessão).

Segundo o clichê, a globalização cria vencedores e perdedores, e a curva elefantina mostra-os em picos e vales. Ela revela: os vencedores incluem a maioria da humanidade.

A parte principal do elefante (corpo e cabeça) inclui aproximadamente sete décimos da população mundial, consiste na “classe média global emergente”, sobretudo na Ásia. No decorrer desse período, essas pessoas tiveram ganhos cumulativos de 40% a 60% na renda real.

As narinas na ponta da tromba representam o 1% mais rico do planeta. Ele também teve uma alta estratosférica em sua renda.

O resto da ponta da tromba inclui os 4% seguintes na escala da riqueza, também se saiu bem.

Quando a curva da tromba paira perto da base, em torno do 85º percentil, vemos os “perdedores” da globalização: as classes médias baixas do mundo rico. Elas ganharam menos de 10%. Elas são o foco da nova preocupação com a desigualdade: a “classe média esvaziada”. Os eleitores de Trump são as pessoas deixadas para trás pela globalização.

 

Steve Pinker não resistiu a reproduzir o elefante mais reconhecível do rebanho de Milanović. Ele serve como um vívido recurso mnemônico para os efeitos da globalização, além de formar um belo trio animal ao lado do camelo e do dromedário.

No entanto, essa curva faz o mundo parecer mais desigual em lugar de fato ser, por duas razões. A primeira é a crise financeira de 2008 ter vindo após o gráfico. Ela teve um efeito curiosamente igualador sobre o mundo. A Grande Recessão foi, inicialmente, uma recessão em países do Atlântico Norte.

As rendas do 1% mais rico foram podadas, mas até a explosão da bolha de commodities, em setembro de 2011, as dos trabalhadores de todas as partes aumentaram de forma substancial. Na China, duplicaram. Três anos depois da crise, continuava a se ver um elefante, porém ele baixou a ponta da tromba e arqueou o dorso até uma altura duas vezes maior. Hoje, está submetido a um regime de emagrecimento.

Outro fator de distorção do nosso paquiderme é uma questão conceitual. Ela gera confusão em muitas discussões sobre desigualdade. De quem estamos falando quando dizemos “a quinta parte na base” ou “o 1% no topo”?

A maioria das distribuições de renda usa o chamado pelos economistas de dados anônimos: refletem categorias estatísticas, não pessoas reais. Dizer a idade do americano médio ter diminuído de trinta anos em 1950 para 28 em 1970 não significa ele ter ficado dois anos mais novo: o “médio” é uma categoria, não uma pessoa.

Leitores cometem a mesma falácia quando leem que “o 1% no topo em 2008” tinha rendas 50% mais altas se comparadas às do “1% no topo em 1988”. Equivocadamente, concluem um punhado de indivíduos ricos terem uma vez e meia a riqueza possuída antes. Pessoas entram e saem de faixas de renda, embaralham a ordem. Por isso, não estamos necessariamente falando sobre os mesmos indivíduos. Isso também vale para “a quinta parte na base” e todas as demais categorias estatísticas.

Dados não anônimos ou longitudinais, capazes de acompanharem as mesmas pessoas ao longo do tempo, são indisponíveis na maioria dos países. Por isso, Milanović escolheu a segunda melhor alterativa: acompanhou quantis individuais em países específicos.

Com isso, por exemplo, indianos pobres em 1988 não foram mais comparados com ganeses pobres em 2008. Ele ainda obteve um elefantoide, porém com cauda e quadril muito mais altos, pois as classes mais pobres de muitos países saíram da extrema pobreza.

O padrão permanece — a globalização ajudou as classes baixas e médias de países pobres, bem como a classe mais alta de países ricos, muito mais do que ajudou a classe média baixa de países ricos —, só que as diferenças foram menos extremadas.

 

 

Estágio Atual da História da Desigualdade publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com



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