sábado, 3 de agosto de 2019

Desigualdade

Steven Pinker, no livro “O novo Iluminismo: Em defesa da razão, da ciência e do humanismo” (São Paulo: Companhia das Letras; 2018), afirma: em países desenvolvidos, na segunda década do século XXI, a desigualdade econômica virou obsessão.

A nova sabedoria convencional afirma: o 1% mais rico ficou com todo o crescimento econômico nas décadas recentes, enquanto os demais não progrediram ou estão afundando lentamente. Se for assim, a explosão de riqueza, documentada no seu capítulo a respeito, não merece ser celebrada, pois não terá contribuído para o bem-estar geral da humanidade.

A desigualdade econômica é uma questão das mais atacadas pela esquerda há muito tempo. Ganhou relevo depois do início da Grande Recessão em 2007.

Porém, a candidatura de Donald Trump saiu vencedora em 2016 com o discurso segundo o qual os Estados Unidos tinham se tornado “um país de Terceiro Mundo” e a culpa pelo declínio da sorte da classe trabalhadora estava não em Wall Street e no 1%, mas na imigração e no comércio exterior.

Os extremos do espectro político, exaltados com a desigualdade econômica por razões diferentes, se encontraram. Seu ceticismo comum em relação à economia moderna ajudou a eleger o presidente americano mais radical à direita dos últimos tempos.

A desigualdade crescente empobreceu mesmo a maioria dos cidadãos? Sem dúvida a desigualdade econômica aumentou na maioria dos países ocidentais desde seu ponto baixo, por volta de 1980, em especial nos Estados Unidos e em outros países de língua inglesa, e sobretudo no contraste entre os muito ricos e todos os demais.

Sem dúvida nenhuma, alguns dos fenômenos encaixados na categoria da desigualdade (existem muitos) são graves e requerem providências, no mínimo para esfriar as propostas destrutivas incitadas — por exemplo, abandonar a economia de mercado, o progresso tecnológico e o comércio exterior.

Analisar a desigualdade é muito complicado porque, em uma população de 1 milhão, existem 999.999 modos de ser desigual. Pinker escreve um capítulo sobre esse assunto porque muita gente foi arrebatada pela retórica distópica e interpreta a desigualdade como um sinal de que a modernidade não conseguiu melhorar a condição humana. Demonstra isso estar errado, e por muitas razões.

O ponto de partida para entender a desigualdade no contexto do progresso humano é reconhecer a desigualdade de renda não ser um componente fundamental do bem-estar. Não é como saúde, prosperidade, conhecimento, segurança, paz e as outras áreas de progresso, examinadas por Pinker nos demais capítulos.

A razão pode ser discernida em uma velha piada da União Soviética. Igor e Boris são camponeses miseráveis. Eles mal conseguem extrair de suas pequenas glebas o suficiente para alimentar a família. A única diferença entre eles é que Boris tem uma cabra esquelética “. Um dia, uma fada aparece para Igor e lhe concede um desejo. Igor diz: “Desejo que a cabra do Boris morra”.

O que a piada quer mostrar, evidentemente, é: se os dois camponeses se tornarem mais iguais, porém nenhum ficará em melhor situação, exceto pelo fato de Igor satisfazer sua inveja rancorosa. A esquerda não pode lutar pelo “nivelamento por baixo”.

A desigualdade em si não é moralmente censurável; censurável é a pobreza. Se uma pessoa tem uma vida longa, saudável, agradável e estimulante, não interessa quanto dinheiro o vizinho ganha, o tamanho da casa dele e quantos carros tem. Do ponto de vista da moralidade, não é importante todos terem o mesmo. O que é moralmente importante é cada um ter o suficiente.

De fato, um enfoque limitado à desigualdade econômica pode ser destrutivo se nos perturbar a ponto de “matar a cabra de Boris em vez de procurar descobrir como Igor pode conseguir uma para si”.

A confusão de desigualdade com pobreza emana diretamente da falácia da quantidade fixa — a ideia de a riqueza “ser um recurso finito a ser repartida sob os ditames da soma zero — isto é, se alguém ficar com mais, é inevitável que outros tenham menos.

Como o progresso, a riqueza não é assim: desde a Revolução Industrial, ela se expande de forma exponencial. Isso significa que quando os ricos se tornam mais ricos, os pobres também podem ficar mais ricos.

Até especialistas repetem a falácia da quantidade fixa, talvez por fervor retórico, e não por confusão conceitual. Thomas Piketty, cujo best-seller de 2014 O capital no século XXI tornou-se uma referência em torno da desigualdade, escreveu: “A metade mais pobre da população é tão pobre hoje quanto foi no passado, não chegando a possuir 5% da riqueza total em 2010, como ocorria em 1910”. Hoje, a riqueza total é imensamente maior se comparada à de 1910. Portanto, se a metade mais pobre é dona da mesma proporção, está muito mais rica, e não “tão pobre quanto”.

[Fernando Nogueira da Costa: nesse debate existe um problema de terminologia. Usa-se “pobreza” como um estado quando falta aquilo necessário à subsistência, ou seja, penúria em termos absolutos. Mas se refere também à classe: é uma referência ao conjunto dos pobres, ou seja, à relativização quanto às demais classes sociais. Neste caso, pobreza ou riqueza é relativa: somos tão ricos quanto nos sentimos, e as pessoas de nosso convívio oferecem, não raramente, o parâmetro para esse sentimento. “Um homem rico é aquele ganhador de 100 dólares a mais  por ano em relação ao ganho do marido da irmã de sua mulher” (H.L. Mencken)].

Uma consequência mais danosa da falácia da quantidade fixa é a crença de, se alguém se torna mais rico, só pode ter roubado da participação de outra pessoa.

Desigualdade publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com



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