segunda-feira, 12 de agosto de 2019

De Financiamento para Finanças: Criação de uma Bolha Imobiliária

Talita Moreira (Valor, 09/08/19) informa: o governo discute com o setor imobiliário o projeto de locação social. A proposta é o PAR – Programa de Arrendamento Residencial com baixa inadimplência substituir o Minha Casa Minha Vida (MCMV) para as famílias com renda enquadrada na faixa 1. Uma possibilidade é relançar o programa perto de 7 de setembro, Dia da Independência, como ato marqueteiro.

As famílias de menor renda, cuja inadimplência é alta por conta do desemprego, recebam benefício para alugar o imóvel e possam comprá-lo com o tempo, numa espécie de leasing. Nas demais faixas, o modelo continuará sendo o de compra.

O FGTS deve bancar, neste ano, R$ 9 bilhões em subsídios ao MCMV. O fundo representa 90% dos benefícios concedidos no programa. O restante vem do Orçamento da União. A medida é um pleito das construtoras para agilizar as obras paralisadas.

As discussões sobre os recursos para o MCMV mostram, na habitação social, não existir apenas uma questão de funding, mas também de capacidade de gerar dinheiro para subsidiar as famílias.

O segmento de baixa renda precisa de crédito imobiliário com subsídio e juros baixos, o que requer políticas governamentais. No mundo todo, o comprador de baixa renda é subsidiado.

Pilar do financiamento à habitação social no Brasil, o FGTS terá seu perfil de investimentos rediscutido pelo governo nos próximos meses. O desafio é manter a rentabilidade das cotas em um ambiente de juros mais baixos.

As medidas em estudo incluem ampla revisão de receitas e despesas, além da busca por novos ativos em áreas como infraestrutura, saneamento e mobilidade urbana, diz o diretor do Departamento do FGTS no Ministério da Economia. Também se cogita revisão da gestão do fundo, hoje monopólio da Caixa. O fundo precisa encontrar uma solução para o desafio de se capitalizar com os juros menores. Todo gestor de portfólio atualmente o enfrenta.

O nó do FGTS existe independentemente das novas regras para o saque dos recursos pelos trabalhadores. O grande dilema é que o crédito à habitação responde por 60% dos ativos do fundo, por determinação legal, mas gera retorno inferior aos 3% mais TR pagos aos cotistas. A rentabilidade dos outros 40%, portanto, precisa compensar essa defasagem.

Não é de hoje que isso é assim, mas a fórmula que assegurou essa compensação nos últimos anos está em xeque. Boa parte da receita do FGTS vem da aplicação de quase R$ 100 bilhões em títulos públicos, mas o rendimento desses papéis recua junto com a Selic. A taxa básica de juros da economia foi cortada em julho para 6% ao ano e a expectativa é que caia ainda mais.

O caminho para o FGTS passa por encontrar novos ativos para investir. Isso inclui projetos “maduros” de infraestrutura. Mas é preciso que haja um processo para a seleção de bons projetos, porque o FI-FGTS teve várias perdas.

As despesas também estão sob revisão. O governo considera elevados os gastos operacionais – que totalizaram R$ 20,5 bilhões entre janeiro e setembro de 2018, informação mais recente disponível. O contrato de R$ 5 bilhões com a Caixa, que faz a gestão dos recursos, é um dos pontos que podem ser revistos. Mas ainda não há clareza sobre o modelo a ser seguido.

Por enquanto, o que há de mais concreto é um programa de digitalização de processos. A expectativa é, com isso, as despesas caírem e a geração de receitas melhorar, por exemplo, em áreas como cobrança judicial de contribuintes inadimplentes com o fundo.

As discussões ocorrem em momento quando o governo amplia as possibilidades de resgate dos recursos do fundo, com a criação do saque-aniversário. O secretário de Política Econômica do Ministério da Economia afirma as medidas serão calibradas de forma as retiradas com a nova modalidade serem equivalentes às do modelo atual, por demissão.

O governo prevê até um efeito positivo para o fundo, já que a expectativa é que as medidas ajudem a aumentar a formalização da economia. A estimativa do ministério é que, em dez anos, haja incremento de R$ 11 bilhões no fundo. Há certeza de o funding à habitação não ser inalterado?

No Brasil que vive longe dos grandes centros urbanos e das plataformas de investimentos, a boa e velha poupança ainda tem seu apelo. A expectativa de bancos e empresas do setor imobiliário é que os recursos da caderneta continuem crescendo, ainda que de forma “vegetativa”.

O grande poupador vai para rentabilidades maiores, mas o pequeno fica. Nunca houve ameaça, nem nos tempos de crise.

A Abecip, associação das instituições financeiras que fazem crédito imobiliário com funding da poupança, prevê crescimento de 11% no saldo das cadernetas neste ano, para R$ 686 bilhões. Até julho, entretanto, a poupança teve resgate líquido de R$ 16,1 bilhões.

A captação negativa é mais resultado da economia fraca do que migração para outros investimentos. As plataformas ainda atingem um público restrito.

Apesar disso, é consenso que a poupança será insuficiente para financiar o crescimento que se espera para o crédito imobiliário. “O estoque da poupança era maior do que o crédito imobiliário. Hoje, não mais é suficiente”, diz o presidente da Abecip.

No Banco Central (BC), a constatação é que o segmento não vai mudar de patamar apenas com esses recursos, daí a busca por alternativas de mercado, apurou o Valor. O presidente do órgão regulador, Roberto Campos Neto, tem ressaltado a importância do crédito imobiliário – linha de longo prazo, taxas de juros baixas e com garantia – para a economia. A visão do BC é que os imóveis têm um valor que hoje não é aproveitado para alavancar negócios, como se faz em outros países com o financiamento lastreado em ativos imobiliários (“home equity“).

A expansão do crédito imobiliário nos próximos anos está condicionada à capacidade do setor de atrair recursos do mercado de capitais. As fontes que bancaram os projetos até aqui – poupança e FGTS – não vão se esgotar tão cedo, mas serão insuficientes para atender a demanda.

O governo sabe ter um desafio pela frente. Por meio do Ministério da
Economia e do Banco Central (BC), planeja uma série de ações com o intuito de tornar o mercado de títulos imobiliários mais atrativo para investidores. As medidas, em diferentes estágios de estudo, vão da liberação do uso do IPCA para indexar contratos no Sistema Financeiro da Habitação (SFH) à criação do registro de recebíveis das incorporadoras.

A discussão sobre o funding ganha relevância por duas razões. Uma é que o governo espera aumentar a participação do crédito imobiliário no PIB – no Brasil, essa relação está em torno de 9%, metade do Chile (18%), e muito inferior aos 68% vistos nos Estados Unidos. O sonho da casta dos mercadores-financistas é criar aqui também uma bolha imobiliária para bons negócios no boom!

A outra questão é a queda na taxa Selic pressionar as duas fontes principais de recursos para o setor. No caso do FGTS, fontes importantes de receita – sobretudo, investimentos em títulos públicos – estão sob ameaça. Há também a mudança na forma de saques das contas do fundo. A medida foi desenhada pelo governo para neutralizar o impacto, mas o modelo ainda não foi testado na prática e preocupa as construtoras. Na poupança, há uma tendência de migração dos investidores para outras classes de ativos. A caderneta acumula resgate líquido de R$ 16,1 bilhões neste ano até julho.

O setor está começando a dar sinais de retomada. É só o começo da arrancada. “O crédito imobiliário vai crescer 30% neste ano e a poupança, não”, afirma o presidente da Abecip, associação de instituições financeiras atuantes no segmento. Para ele, o saldo da poupança vai crescer entre 6% e 10% “num ano bom”.

A Abecip prevê alta de 13% no volume de financiamentos imobiliários concedidos neste ano, para R$ 132 bilhões. O crédito com recursos da poupança (SBPE) deve crescer 31%, para R$ 75 bilhões, enquanto as operações com funding do FGTS – basicamente, Minha Casa, Minha Vida (MCMV) – devem recuar 4%, para R$ 57 bilhões.

Na estrutura atual, há uma transferência de renda de quem poupa para quem toma o crédito imobiliário. É lógico: o funding secou e vai secar mais.

Falta funding para cerca de 300 mil imóveis por ano se consideradas as necessidades habitacionais para os próximos dez anos e o número médio anual de unidades financiadas com poupança e FGTS na última década. É, inicialmente, esse o espaço que terá de ser preenchido pelo mercado de capitais.

Somente para preencher essa lacuna, o volume representado por instrumentos como Certificados de Recebíveis Imobiliários (CRI), Letras Imobiliárias Garantidas (LIG) e Letras de Crédito Imobiliário (LCI), que hoje soma R$ 230 bilhões, teria de crescer quase 50%, segundo cálculo feito pelo Valor.

O crédito imobiliário no Brasil está muito concentrado nos bancos por causa da poupança e do monopólio da Caixa no FGTS. Os mercadores-financistas pretendem destravar essas amarras para o mercado crescer.

O país tem um déficit habitacional de 7,7 milhões de residências e uma demanda de 9 milhões de novos domicílios até 2027, segundo estudo elaborado pela FGV para a Associação Brasileira das Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc). FGTS e poupança foram e continuarão importantes, mas o setor não pode ficar preso a dois bolsões de funding.

A casta dos mercadores-financistas imagina o mercado brasileiro estar começando a reunir as condições para se desenvolver. A taxa básica de juros desceu a 6% ao ano, com viés de baixa, e o marco regulatório está adequado após a solução para os distratos. Cada queda de 1 ponto percentual na Selic tem o potencial de colocar no mercado imobiliário mais 200 mil famílias. Falta agora é uma melhora da confiança, dependente da recuperação do emprego.

A expectativa é, com juro baixo, papéis como LIG e CRI ganharem relevância e representem bem mais além do percentual atual de 18% do total do funding. No entanto, o governo desenha algumas mudanças nesses instrumentos para torná-los mais atrativos.

Uma das grandes mudanças previstas é a liberação do uso de índices de preço, como o IPCA, para indexar contratos de financiamento imobiliário. Desde o ano passado, isso já é possível nas operações feitas no Sistema Financeiro Imobiliário (SFI), mas o efeito foi pequeno porque essas linhas atendem principalmente imóveis mais caros.

Por isso, nas próximas semanas o BC deverá estender a permissão ao SFH, modalidade em que os bancos seguem regras mais rígidas e o comprador pode usar recursos de sua conta do FGTS para comprar residências avaliadas em até R$ 1,5 milhão. A medida precisa ser aprovada pelo Conselho Monetário Nacional.

A Caixa aposta nesse caminho e aguarda a liberação dos reguladores para lançar linhas atreladas à inflação, que vão variar entre IPCA mais algo em torno de 3% a 5%, dependendo do relacionamento que o cliente tiver com o banco. O plano do presidente da instituição é “empacotar” esses créditos, securitizá-los e vendê-los – e então abrir espaço no balanço para novas operações. A intenção da Caixa é distribuir parte dos CRI entre seus próprios clientes, em operações que poderiam ter taxas da ordem de IPCA mais 2% para os investidores.

A indexação dos contratos por índice de preços é considerada vital para a securitização. Hoje, praticamente não existe CRI de empreendimentos residenciais porque estes são necessariamente atrelados à Taxa Referencial (TR) – que os investidores consideram arbitrária e difícil de travar com mecanismos de “hedge“.

Os bancos vão ter apetite pelo IPCA até para manter em carteira. São créditos mais fáceis de negociar. “Perguntinha-básica”: e a disparidade entre as correções das prestações imobiliárias pelo IPCA e dos salários sem correções monetárias equivalentes? Esqueceram da “crise do sub-prime (avant la lettre) brasileiro” — crise dos mutuários — no fim do regime militar? Querem reeditá-la?!

A indexação pelo IPCA vai gerar concorrência aos bancos na oferta de crédito imobiliário ao facilitar a venda desses ativos. Uma pequena companhia hipotecária não consegue carregar uma operação de 30 anos no balanço. E os clientes sujeitos às ondas de desemprego e corte de salários?!

Apesar de expor o tomador do crédito e os bancos à oscilação inflacionária, a indexação pelo IPCA não representa grandes riscos, na visão do BC. O regulador entende: os modelos de crédito das instituições financeiras definirão o produto correto para cada cliente. Mas o Banco Central vai observar e poderá aumentar as exigências de capital se detectar problemas, diz fonte próxima à questão.

Também há quem defenda que as taxas para sejam repactuadas de tempos em tempos, como em outros países. Tal como os contratos geradores da crise da dívida externa no início dos anos 80s! Esperem até haver um novo choque inflacionário e consequente choque dos juros!

As linhas baseadas no IPCA poderão usar funding tanto da poupança ou quanto de captações no mercado, como a LIG para financiar imóveis voltados às classes média e alta. Caso a taxa Selic continue em trajetória de queda, é possível que os contratos indexados pela inflação cheguem às faixas mais altas da habitação social, financiada pelo FGTS. Esse, no entanto, é um processo longo, ou pior, ilusório em uma economia instável como a brasileira.

O funding terá de vir cada vez menos de direcionamento e mais de mercado. Com essa expectativa especulativa, gestoras lançam fundo imobiliários, cujas cotas começaram a ser negociadas para investir em CRI de empreendimentos espalhados pelo interior do país.

A solução a ser copiada da bolha imobiliária norte-americana para o Brasil prevê a coexistência da securitização, comum no mercado americano, e de títulos bancários garantidos por carteiras imobiliárias, modelo europeu. Por essa mistura à brasileira, o governo do capitão também pretende mudar a legislação da LIG. Inspirado nos “covered bonds” europeus. Esse papel tem dupla garantia: do banco emissor e de um conjunto de ativos imobiliários.

O Ministério da Economia estuda alterar a legislação recente criadora  das letras imobiliárias garantidas para permitir os títulos serem emitidos também no exterior e mantendo a isenção tributária para investidores. Com isso, seria possível acessar um “bolso muito mais profundo” (e furado), especialmente na Europa.

Ao mesmo tempo, a Comissão de Valores Mobiliários deve regulamentar dois pontos relacionados à LIG:

  1. a criação de um mercado secundário e
  2. a possibilidade ofertas simplificadas, como as das emissões de Certificados de Operações Estruturadas (COE).

É cedo para saber qual modelo vai prevalecer, mas por ora os bancos privados preferem a LIG à securitização, até porque no mercado local não há grande tradição de venda de carteiras de crédito ativas. A LIG vai ser o carro-chefe, vai ter o grande papel na expansão do crédito imobiliário. Tem liquidez mais adequada e oferece prazos longos.

Esses títulos começaram a ser emitidos no fim de 2018 e o executivo prevê que o mercado alcance estoque de R$ 15 bilhões até dezembro. A tendência é que, com o tempo, esses papéis substituam a LCI, cujo lastro está atrelado ao direcionamento da poupança.

O BC trabalha ainda em outras frentes. Uma delas prevê a criação de mecanismos de registro de recebíveis das incorporadoras, da mesma forma que foi feito com cartões de crédito. Assim, essas empresas poderiam usar esses ativos como garantia para se financiar não apenas nos bancos, mas também com outros investidores.

Outra iniciativa no radar do BC é permitir cooperativas de crédito passarem a captar poupança para o setor imobiliário, e não só rural, como fazem hoje. Com isso, entrariam mais competidores. A medida faz parte da Agenda BC#, mas não tem prazo para ser adotada.

De Financiamento para Finanças: Criação de uma Bolha Imobiliária publicado primeiro em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com



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